/.010//eu não sou a depressão, eu tenho depressão. será?
reflexões sobre o rio de janeiro
estive no rio de janeiro nos últimos sete dias e estive deprimida na maior parte deles.
como um amigo inconveniente que vira para você com frases como “depressão? mas eu te vejo sorrindo aí!” ou “que depressão o que, vamo rolezar!”, estar deprimida no rio de janeiro quase me fazia me sentir culpada por ser humana, ter sentimentos e, principalmente, estar doente. é como se a própria cidade quisesse evitar qualquer possibilidade de tristeza e gritasse das ruas, nas quais andei e bebei cerveja e gim, um sonoro “deixa dessa onda aí de depressão!”.
e eu não falo isso de um jeito bom.
em nenhum momento aqui quero dizer que a cidade me impediu de ficar deprimida. pior, fez com que, pela primeira vez em dezoito anos de doença, eu me culpasse por não conseguir melhorar e aproveitar a cidade, afinal, é o rio de janeiro!
fiquei no apartamento oitocentos-e-tres de um prédio em botafogo e o único dia em que não olhei da janela, medindo minha queda e considerando o pulo fora o último, afinal, não tive tempo. os check-outs estão cada vez mais cedo.
“nunca admiti ser a depressão, eu tenho depressão. Não vivo em crise. É como ter asma: sou asmática, mas fico anos sem ter um ataque severo; por isso tenho o cuidado de estar sempre atenta em não permitir que isso aconteça.” (Chatices do amor, Fernanda Young)
este é um trecho de um livro póstumo da fernanda young, um dos dois únicos livros que comprei na bienal (o outro sendo Gene - minha história de despersonalização, da minha talentosa e gente boníssima colega de editora Hannah Maruci). fernanda young, carioca de nascença e paulistana de existência, é e sempre foi minha escritora favorita. numa carta, escrita em nove de outubro de dois mil e dezessete, ela discorre sobre depressão e asma, doenças que dividimos. menos de dois anos depois, uma crise de asma mataria a mulher que eu sempre quis ser. uma das três, pelo menos. ainda hoje, a morte da fernanda young me atinge. como me atinge a morte do david bowie. existem essas pessoas que parecem maiores que a vida, que parece que são impossibilitadas de morrerem pela justiça divina. não são.
tenho tratado a asma e parado de fumar, mas é uma doença traiçoeira. exatamente como a depressão, uma doença que nunca consegui tratar por mais de um ou dois meses, afinal, os remédios sempre param de funcionar, mesmo chegando em suas doses máximas.
encontro, portanto, uma dificuldade de me conectar e concordar com os apontamentos da fernanda acerca da doença que dividimos. é claro que sei que sou muito mais do que a depressão e há mais de uma década parei de depender dos meus episódios depressivos para exercer meu ofício de escritora. mas não sei se estou depressiva. eu sou depressiva. é parte de mim como escrever é parte de mim, como ser trans é parte de mim, como ter um fígado e pulmões é parte de mim. não só porque carrego essas coisas, mas porque elas moldam como eu enxergo o mundo — e como o mundo me enxerga.
minhas próprias definições pessoais são moldadas por como a depressão corre pelo meu corpo. sou caseira (pois sair de casa é difícil e não tenho forças); não vou para festas (pois a mistura de muitas pessoas e barulho me deixa completamente inutilizada no dia seguinte); tenho poucos e bons amigos (porque a maioria já foi embora depois de testemunhar episódios curtos e longos, inclusive pessoas cuja aproximação mútua foi motivo de muita felicidade e após um episódio depressivo, as conversas foram rareando até as mensagens só pararem de chegar); adoro comer a mesma coisa todos os dias (porque eu não tenho forças pra cozinhar algo diferente); me visto com um uniforme: o mesmo tênis, a mesma calça ou saia, o mesmo vestido colado usado de camiseta, tudo preto, pois aos vinte anos eu decidi que era mais fácil me vestir assim do que me convencer que eu precisava (preciso?) de roupas melhores.
não posso ignorar quem eu sou, nem fingir que a doença não é, também, parte de mim.
conheça meus livros: depois que a chuva passar, meu sangue escorre nos ladrilhos furta-cores da casa que o banco tomou de nós e as abelhas suicidas foram à praia e ainda não voltaram.
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obrigada!
realmente, a doença vai construindo nossa forma de existir no mundo